“Vida sem valor”
O fetiche do capital e a economia política da “vida nua”
[VIE SANS VALEUR. LE CAPITAL-FÉTICHE ET L'ECONOMIE POLITIQUE DE LA " VIE NUE " ]
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Bruno Lamas
Note préliminaire : ce texte est la version écrite d'une communication intitulée « Vie sans valeur. Le fétiche du capital et l'économie politique de la "vie nue" », faite à Lisbonne, le 21 Février 2015, durant la journée « De la vie nue à la destitution de la puissance : le projet " Homo sacer " de Giorgio Agamben » organisée par UNIPOP. A cette occasion, avec un temps d'exposé limité, il a été principalement question de montrer comment la critique de l'économie politique était un « point aveugle » des concepts d'« homo sacer » et de « vie nue ». Dans le prochain essai, je vais essayer de développer cette critique, en mettant particulièrement en évidence les différents aspects problématiques de l'oeuvre d'Agamben.
« Le procès par lequel l'individu se pose en travailleur, dans cette nudité, est lui-même un produit historique ».
Karl Marx, Manuscrits de 1857-1858 dits « Grundrisse », éditions sociales, 2011, p. 433.
Nota prévia : o presente texto constitui a versão escrita de uma apresentação intitulada «“Vida sem valor”. O fetiche do capital e a economia política da “vida nua”», efectuada em Lisboa, a 21 de Fevereiro de 2015, na jornada “Da vida nua à potência destituinte: o projecto ‘Homo sacer’ de Giorgio Agamben”, organizada pela Unipop. Nessa ocasião, com um tempo de exposição limitado, tratou-se sobretudo de procurar mostrar a crítica da economia política como o “ponto cego” fundamental dos conceitos de “homo sacer” e “vida nua”. Num próximo ensaio tentarei desenvolver a crítica aqui apresentada, realçando sobretudo os vários aspectos problemáticos da obra de Agamben.
O pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa nudez, é ela própria um produto histórico.
Karl Marx, Grundrisse (2011: 388)
A propósito da recente polémica acerca do custo para o sistema de saúde português do tratamento para a hepatite C, um professor de economia, um tal de Mário Amorim Lopes (2015), assinou um artigo de opinião no jornal digital Observador com o título: “Quanto vale um vida?”. Fazendo uso da típica confusão fetichista capitalista entre “escassez de recursos” e “escassez de dinheiro”, a resposta é pouco menos que uma introdução cínica à economia política da eutanásia. “Sentimentalmente [escreve ele], diremos todos que não tem preço. O problema é que os cuidados de saúde têm um custo. E sendo os recursos escassos, coloca-se o problema económico do custo de oportunidade: para salvarmos uma vida, quantas teremos de sacrificar? (...) Estas decisões, envolvendo vidas, requerem contudo uma análise económica. E, para o fazer, temos de avaliar o valor de uma vida. (...) [E] existem diversos métodos em economia da saúde para tentar estimar [o seu valor]”.
Esta abordagem económica sobre o “valor da vida” é no fundo complementar da abordagem jurídica levada a cabo há quase cem anos pelo jurista alemão Karl Binding (Binding & Hoche, 1992), num livro a favor da eutanásia entitulado “A autorização para suprimir a vida indigna de ser vivida”, texto esse que Giorgio Agamben no seu primeiro livro da série Homo Sacer considera justamente “a primeira articulação jurídica” da “estrutura biopolítica fundamental da modernidade”(Agamben, 1998: 132), e que, a seu ver, delimita uma “nova categoria jurídica de «vida sem valor» (...) [que] corresponde exactamente, ainda que num sentido aparentemente diferente, à vida nua do homo sacer” (Agamben, 1998: 134).
À primeira vista, o termo “valor” parece possuir conotações absolutamente distintas nas duas abordagens: no primeiro caso, como “valor económico” e no segundo como “valor ético” (ou político-jurídico). De facto, é também isso que Agamben assume na sua aproximação ao texto de Binding. No entanto, escapa a Agamben que toda a argumentação de Binding é também ela atravessada por critérios económicos para a justificação jurídica da eutanásia, sobretudo a propósito de determinados doentes mentais, a quem ele chama de “idiotas incuráveis”. Entre outras coisas, Binding fala por exemplo da “força de trabalho (...) e investimento” inutilmente aplicados em manter vidas indignas de ser vividas, ou das vidas que são “fardos” para as respectivas famílias e para a sociedade no seu conjunto (Binding fala por isso não só de vidas “sem valor” mas também de vidas com “valor negativo”). Apesar disso, na sua visão balizada pelo horizonte da filosofia do direito, Agamben acaba por negligenciar o aspecto dito “económico” de Binding e manter toda a discussão do conceito de “vida sem valor” (assim como de “vida nua” e homo sacer) exclusivamente no interior da forma jurídica. Essa escassa reflexão sobre a forma económica é, aliás, um problema que atravessa de certo modo toda a série Homo Sacer, apesar de no livro Estado de Excepção o próprio Agamben confirmar historicamente “a tendência moderna de fazer coincidirem emergência político-militar e crise económica” (Agamben, 2007: 29). Creio que com uma perspectiva unilateralmente jurídica fica insuficientemente esclarecida a dinâmica destrutiva do todo social capitalista, estruturado em torno do “valor” como forma social fetichista específica da sociedade moderna e o a priori fundamental constitutivo tanto da forma económica como da forma político-jurídica.
No que se segue procurarei mostrar de que modo alguns aspectos das investigações de Agamben, apesar das suas limitações, podem ser criticamente desenvolvidos no sentido de uma crítica radical da modernidade e do capitalismo, na esteira da que é geralmente conhecida como “crítica do valor” (mas que mais correctamente deve ser designada como “crítica da dissociação-valor”), e cujos autores mais relevantes são Robert Kurz e Roswitha Scholz.
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É extremamente difícil identificar em Agamben um conceito razoavelmente claro de capitalismo. O próprio termo é usado muito raramente, tanto na série Homo Sacer como em obras paralelas. Só no ensaio recente Benjamin e o Capitalismo (Agamben, 2013), Agamben se debruça explicitamente sobre o tema, realçando também aí um fenómeno estranhamente ausente da série Homo Sacer: o dinheiro. Neste ensaio Agamben relê o conhecido fragmento de Benjamin, O capitalismo como religião, à luz da suspensão da convertibilidade do dólar em ouro, declarada por Richard Nixon em 1971. Seguindo as teorias nominalistas do dinheiro, Agamben considera que “todo o dinheiro é apenas crédito”. E uma vez que “crédito” é etimologicamente derivado de “fé”, “o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé)”. Deste ponto de vista, “o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito, ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé – o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o dinheiro”. De acordo com Agamben, a partir de 1971, o dinheiro desmaterializou-se e “esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente autorreferencial”, sendo, “agora imediatamente e sem resíduos, substância”, tomando o Banco o lugar da Igreja, manipulando e gerindo a fé.
A crítica de Agamben é certamente bem intencionada e até vai na direcção certa ao querer mostrar o carácter irracional da modernidade, mas a sua conceptualização acaba por mistificar amplamente o capitalismo. Aparentemente estamos simplesmente perante a extensão de uma das teses principiais da série Homo Sacer, a de que a sociedade moderna é regida por “conceitos teológicos secularizados”. Mas para isso Agamben teria que demonstrar não só o dinheiro como uma categoria religiosa das sociedades pré-modernas como também clarificar o seu processo de “secularização” com a ascenção da modernidade (à semelhança do que fez para os conceitos de soberania e oikonomia). Ora, não é isso que Agamben faz. Agamben não nos diz aqui que o dinheiro era um fenómeno religioso pré-moderno que foi secularizado com a modernidade; Agamben procura, sim, mostrar o capitalismo como a “religião da modernidade”, uma continuação da religião por outros meios, em que “Deus é o dinheiro”. Mas se “a transcendência de Deus ruiu” e agora “ele foi incluído no destino humano”, como diz Benjamin e Agamben nos lembra, então o capitalismo também não é verdadeiramente uma religião porque lhe falta o necessário princípio transcendente.
Esta problemática só pode ser esclarecida a partir de um aprofundamento da análise marxiana do fetiche, que, de acordo com Agamben, foi “estupidamente” abandonada (Agamben, 1993: 61; ver também Agamben, 2000: 76) pelo marxismo. Para ilustrar o conceito de fetiche, Marx recorreu justamente a uma “analogia” com a religião, mostrando que ambos têm em comum o facto de criações e produtos humanos se autonomizarem e parecerem “dotados de vida própria” (Marx, 1996: 198), tornando-se pressupostos e formas sociais a priori do pensamento e acção. Mas, como mostrou Robert Kurz no seu aprofundamento desta abordagem, também não se pode equiparar ou colocar em simples continuidade as relações de fetiche pré-modernas, ancoradas num relacionamento com Deus, em que um princípio transcendente se encontra personificado em seres humanos (reis, padres, sacerdotes, etc), hierarquizando e estabilizando toda a estrutura social, e as relações modernas de fetiche constituídas pelo capital, em que o princípio social apriorístico se encontra antes objectivado nas mercadorias e no dinheiro (nas palavras de Marx: “representações fantasmagóricas” de “trabalho abstracto”), e constitui um sistema autonomizado de brutal transformação do mundo (ver Kurz, 2006, , 2014). Em ambos os casos estamos perante relações de fetiche, mas na relação de capital já não se trata de simples princípio transcendente (fora do mundo) mas antes de um princípio transcendente tornado paradoxalmente imanente (deste mundo), a que Robert Kurz chama de “transcendental” (dando um novo sentido ao termo kantiano).
Como no seu ensaio Benjamin e o capitalismo, Agamben parece entender a religião como uma mera crença opcional e inteiramente subjectiva, que é apenas a nossa forma moderna de entendimento, acaba por nivelar a diferença entre a transcendência das constituições religiosas pré-modernas e o carácter transcendental das relações modernas do capital. E com este entendimento subjectivista, desaparece todo o carácter socialmente objectivo, abrangente e sistémico do capitalismo, assim como o lado abstractamente material do fetiche do capital, que pode então ser considerado um problema meramente psicológico. Mas, afinal de contas, como é que os indivíduos modernos podem “viver unicamente da fé”?
No final do ensaio, Agamben constata “que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista (...) vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto”. Mas se o dinheiro é hoje “imediatamente substância”, como diz Agamben, porque motivo é necessário hipotecar trabalho futuro? E porque motivo necessitam as empresas de cada vez mais capital “para poderem continuar a produzir”? Agamben reconhece aqui a existência de uma relação socialmente objectiva entre trabalho e dinheiro, que na verdade desmente o seu conceito de dinheiro como pura fé ou crédito. No fundo, confunde-se o facto das mercadorias e o dinheiro representarem cada vez menos trabalho, no actual contexto da Terceira Revolução Industrial, com a ideia que o dinheiro já nem sequer precisa de representar trabalho e que o capitalismo poderá continuar infinitamente dessa forma “dessubstancializada”. Na verdade, ao contrário do que afirma Agamben, o capitalismo vive hoje “de um contínuo endividamento que não pode” mas tem de ser extinto. E é em larga medida nesta contradição que está o seu potencial barbárico.
Podemos agora esboçar uma reconstrução da história do capitalismo na esteira da crítica da dissociação-valor e desse modo mostrar também a outra luz alguns dos conceitos que Agamben apresenta[1]. Aquilo que em termos categoriais está em causa na constituição do capitalismo é o processo histórico de “transformação do dinheiro em capital” (Marx), algo que em termos reais foi um longo e sangrento processo que Marx chamou de “acumulação original do capital”. Mas essa não se tratou simplesmente da concentração e aumento quantitativo do capital como “coisa” previamente existente, mas antes do próprio processo da sua constituição como algo historicamente novo, em que o dinheiro, que nas sociedades pré-modernas desempenhava uma função religiosa ou de intermediação de relações de reciprocidade e obrigação pessoal (nomeadamente sacrifícios, oferendas, dádivas, contra-dádivas, etc.), também elas vincadamente religiosas até ao final de Idade Média, se autonomizou como fetiche e pressuposto e finalidade de toda a produção social, ou seja, capital, “valor que se valoriza a si mesmo” (Marx). Verdadeiramente decisivo para essa transformação foram as sangrentas exigências impostas por aquilo a que historiografia chama a “revolução militar”, quer dizer, as mudanças estruturais associadas à invenção das armas de fogo no século XIV e à formação das máquinas militares e estatais modernas, que em conjunto se tornaram um verdadeiro monstro insaciável de recursos e que promoveu a brutal monetarização de toda a reprodução social.
Foi através desse processo dissolvente das formas de reprodução social pré-modernas que também nasceram verdadeiramente o “trabalho” como abstracção social da energia humana canalizada para a produção de mercadorias e o “Estado” como capataz da organização do material humano e da transformação da sociedade numa gigantesca máquina de trabalho para alimentar a máquina militar. O estado moderno consolida-se justamente declarando pela primeira vez o estado de excepção para milhões de seres humanos, que se viram violentamente separados de todos os seus meios de subsistência, reduzidos ao que Marx chamou justamente de uma “nudez” (Marx, 2011: 388), e obrigados a uma enorme diversidade de situações de trabalhos forçados, de que são exemplo tanto as manufacturas estatais, prisões, casas de trabalho e manicómios, (que de certo modo fazem parte da pré-história do campo de concentração como “nomos da modernidade”), bem como, numa escala superior, as plantações esclavagistas das colónias americanas.
O processo histórico de imposição da abstracção “trabalho” como critério fetichista de integração/exclusão social acompanhou assim desde sempre a história do capitalismo. Logo na segunda metade do século XIV começou a dar-se uma profunda mudança estrutural nas instituições de assistência social: de um lado, os pobres “dignos” (os velhos, órfãos, mães viúvas, doentes e incapacitados de toda a espécie); do outro lado, os mendigos válidos, aqueles que eram considerados capazes de trabalhar mas que por qualquer motivo não o faziam, sendo essa a fundamentação das várias leis europeias contra os vagabundos, sobretudo a partir do século XVI. Nesse contexto, foi logo reservada para os roma, os ditos “ciganos”, uma classificação especial. A sua chegada ao ocidente no contexto da formação das máquinas estatais modernas foi logo vista com suspeita: espiões, apátridas, parasitas, preguiçosos e indiferentes à ética do trabalho, etc. São por isso publicadas dezenas de leis anticiganas por toda a Europa onde o cigano aparece imediatamente como uma espécie de “vagabundo de raça” (Castel, 1998: 136, n87) estando-lhe destinado, mais do que os trabalhos forçados ou a escravatura, incondicionais ultimatos de expulsão ou verdadeiros decretos de morte. Rotulado no ocidente como avesso ao trabalho e de impossível escravização, o “cigano” surge antes classificado como o eterno “fora-da-lei”, o verdadeiro “homo sacer par excellence” da Modernidade até aos dias de hoje, como mostrou Roswitha Scholz (2014: 75).
Entretanto, se a coerção directa estatalmente organizada foi suficiente para a introdução do sistema social do “trabalho abstracto”, este apenas pôde generalizar-se de acordo com a pretensão universal da forma da mercadoria a partir do momento em que também os seus produtores assumissem de certo modo a forma da mercadoria, de maneira que a coerção da violência imediata do estado de excepção originário foi também progressivamente cedendo lugar à coerção mediada pelo mercado, e o trabalho abstracto tornado norma de integração social. Esta exigência funcional da “valorização do valor” teve o seu correspondente ideológico na simultânea ascensão do liberalismo e na primeira definição da “propriedade de si”, fixada por Locke no século XVII: “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele” (Locke, 1998: 409). Contra as disfuncionalidades do despotismo absolutista fazia-se então valer o civismo do mercado, a autopropriedade como “direito natural” e a legitimação da propriedade pelo trabalho. Enquanto forma burguesa, a propriedade de si foi a expressão ideológica de uma extensão da forma da mercadoria aos próprios indivíduos.
Nesse âmbito, é preciso dizê-lo, os trabalhadores não são eles mesmos uma mercadoria (como o escravo) mas antes proprietários apenas de uma e nova mercadoria abstracta que é também a única que cria valor novo (ou mais-valia): a “força de trabalho”; um conceito que hoje associamos imediatamente a Marx mas que originalmente havia sido avançado na sua época pela teoria da termodinâmica a propósito da conservação da energia em todos os corpos materiais. Esta origem não é casual. É que, do ponto de vista da relação de capital, a mercadoria vendida por um trabalhador não é nem o seu corpo nem o produto do seu trabalho, mas o que Marx chamou de “trabalho abstracto”, o puro “dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. humanos” (Marx, 1996: 197-8), que é também o pressuposto e a “substância social” do valor, uma forma de “riqueza abstracta” cuja magnitude é medida em tempo.
Ora, parece-me que os conceitos de Marx de “força de trabalho” e de “trabalho abstracto” eram assim já extremamente fecundos para a crítica do que veio a ser conhecido como “biopolítica” e para o entendimento do que podemos chamar a “economia política da vida nua”. O capitalismo não devora directamente o corpo dos seres humanos mas a sua energia; ele é por isso um sistema social baseado na fadiga (Rabinbach, 1992), no puro gasto de energia humana na produção de mercadorias. Um aspecto decisivo é que não é o corpo humano em si mesmo que assume a forma da mercadoria mas apenas a combustão de energia abstracta nele contida; não é portanto a nudez mas antes a vida dessa nudez. Mas como o dispêndio de energia humana só pode acontecer através de um corpo concreto, o correspondente carácter paradoxal da mercadoria força de trabalho revelou-se uma fonte ininterrupta de ambiguidades e equívocos, e não em grau menor a respeito do estatuto do corpo na forma da autopropriedade (ex.: o assalariado vende ou “aluga” o corpo? etc).
Esses problemas não impediram que no autoentendimento liberal o mercado aparecesse como o “verdadeiro Éden dos direitos naturais do homem” (Marx), onde proprietários de mercadoria-dinheiro e “proprietários da força de trabalho” se relacionam como sujeitos de direito, livres e juridicamente iguais. Daqui decorreu a metafísica moderna da liberdade contratual e toda uma ideologia sobre a igualdade e o consenso na troca de mercadorias. A cidadania jurídica e política torna-se então uma reivindicação universalista tacitamente fundamentada na autopropriedade e no “trabalho abstracto”. Não é portanto surpreendente que o universalismo dos direitos naturais seja desde o início marcado por um hiato entre a existência física de um ser humano e o seu reconhecimento como tal, hiato esse que na forma jurídica é disputado em torno do conceito de “pessoa”. Ora, não por acaso, “pessoa” (persona) significa originalmente “máscara” (Mauss, 2003), o que mostra que o reconhecimento de um ser humano está ainda dependente de uma forma metafísica que está sobreposta à sua corporalidade e sob a qual ele tem realmente de agir. O problema é também visível no esforço que a filosofia idealista alemã fez por deduzir cada corpo individual de um sujeito transcendental prévio, corpo que, afinal de contas, ainda tem de dar provas sistemáticas de capacidade de conservação e valorização, e nada o resume melhor nessa época do que o “direito à vida” defendido por Fichte: “a possibilidade de viver está condicionada pelo trabalho e não existe um tal direito onde a condição não foi satisfeita” (Fichte, 2012: 255). Determinante para o reconhecimento de um ser humano como “pessoa” não é por isso imediatamente o seu corpo mas o “trabalho abstracto” exercido pelo corpo. ” A crítica de Agamben aos direitos humanos talvez pudesse ser enriquecida com uma atenção demorada sobre esta questão.
Mas o universalismo baseado na autopropriedade é não só condicional como igualmente falso. E creio que a conceptualização de Agamben deveria ser completada com a admissão do carácter estruturalmente patriarcal e racista do capitalismo moderno. A autopropriedade aplica-se supostamente a todos os seres humanos, mas na realidade sempre se mostrou também como um princípio estrutural “masculino, branco e ocidental” (Kurz, 2002). Ao mesmo tempo que o capitalismo se impunha, as mulheres eram excluídas da autopropriedade (Pateman, 1988) e responsabilizadas por todas as actividades incompatíveis com a “valorização do valor” mas que ainda assim se mantém como necessário pressuposto tácito de reprodução social (criação dos filhos, administração do lar, preparação das refeições, etc.) e sem as quais o capitalismo não poderia de todo desenvolver-se, aquilo a que Roswitha Scholz chamou o processo de dissociação sexual (Scholz, 1992). Num estatuto inferior se mantiveram também todos os homens não-brancos, sobretudo os negros, que foram classificados como “sub-humanos” pela maioria dos iluministas e comercializados à escala mundial como escravos. Não é coincidência que o feminismo e o abolicionismo do século XIX tenham baseado as suas reivindicações na exigência de uma “verdadeira” universalidade da autopropriedade (ver por exemplo Stanley, 2007). Sendo certo que através dessa luta vitoriosa se melhoraram inegavelmente as condições de vida das mulheres e dos não-brancos da generalidade dos países ditos desenvolvidos, também é verdade que essas melhorias se deram em função das necessidades da “valorização do valor” e na mesma medida em que os próprios assumiam as categorias capitalistas e se mostravam “máscaras de carácter” dignas de reconhecimento; como em outro contexto afirmou Agamben (2010: 61): “a luta pelo reconhecimento é (...) luta por uma máscara”. Mas esse reconhecimento da autopropriedade das mulheres e dos não-brancos está entretanto longe de lhes garantir de uma vez para sempre o seu reconhecimento, não só porque a forma jurídica se encontra permanentemente ameaçada pelo carácter patriarcal e racista do capitalismo mas também porque esta se encontra submetida à dinâmica da forma económica que lhe está na verdade pressuposta. A autopropriedade é condição para se entrar como sujeito no mercado da concorrência universal mas não uma garantia que nele se sobreviva.
Para um autoproprietário se manter no mercado é preciso que ele seja solvente, que através da venda da sua força de trabalho produza mais valor do que aquele que consome. Mas o valor da força de trabalho é variável e relativo ao conjunto global da reprodução social capitalista, tendendo historicamente a baixar em função do desenvolvimento das forças produtivas e da correspondente desvalorização dos meios de subsistência. Esta desvalorização da força de trabalho implica também uma produção cada vez menor de valor novo (mais-valia) no conjunto da sociedade e que apenas pode ser compensada por uma absorção cada vez maior do número de trabalhadores. Isto apenas funciona enquanto o desenvolvimento da maquinaria cria mais postos de trabalho do que aqueles que suprime. No contexto de terceira revolução industrial da microelectrónica esse mecanismo de compensação esgota-se e cresce irremediavelmente a massa de autoproprietários supérfluos, objectivamente impossibilitados de vender a sua força de trabalho.
Estamos hoje perante aquilo a que noutro momento chamei de “insolvência dos corpos” (Lamas, 2014). A modernidade do fetiche do capital, na verdade, recuperou as antigas relações de sacrificio que Agamben reconhece terem estado na origem das comunidades humanas, dando-lhe uma nova forma. A relação de sacrificio desvinculou-se do antigo princípio transcendente das matrizes religiosas pré-modernas e foi antes transposto para o sistema social bem terreno e autonomizado da relação de capital (Kurz, 2014: 366), ganhando assim uma forma transcendental. Aí os seres humanos aparecem como autoproprietários que auto-sacrificam a sua energia vital através do trabalho abstracto com o objectivo social último de valorizar o valor, de criar dinheiro para voltar a criar mais dinheiro. Quando esta norma começa a rodar em falso, em virtude da sua própria contradição fundamental, a excepção mostra o carácter monstruoso da própria regra. É neste sentido que Agamben pode dizer que hoje "somos todos virtualmente homines sacri" (Agamben, 1998: 111). De facto, para um número cada vez maior de pessoas, a energia vital sacrificada através do trabalho abstracto da relação de capital já não cria mais o valor necessário ao próprio consumo do sacrificio. Para muitos, a solução é já a venda do corpo "às peças", o que se vê na crescente liberalização do comércio de órgãos. Outros tornam-se insacrificáveis, expostos à morte, não simplesmente por causa de uma declaração politico-jurídica ou da sua ausência, mas pela simples falta de rentabilidade sacrificial.
21 de Fevereiro de 2015
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[1] Deste ponto em diante recupera-se a argumentação já desenvolvida no ensaio A Insolvência dos corpos (Lamas, 2014), realçando agora os possíveis pontos de contacto com alguns dos conceitos de Agamben.